domingo, 20 de junho de 2010

Consulta FTL 2010 - Ronaldo Cavalcante

Olá Gente!
 
Entre 03 e 05 de junho de 2010 no Rio de Janeiro, ocorreu a Consulta da Fraternidade Latino Americana para avaliar os caminhos da Missão Integral, desde o Congresso de Lausanne em 1974 na Suiça, até nossos dias. Além da trajetória histórica do movimento, a intenção também foi apontar os descaminhos e os desafios para aqueles que pretendem exercer um ministério relevante para esta geração, tendo a vida, os ensinos e o ministério de Jesus Cristo como referência. Temos aqui, a conferência de Ronaldo Cavalcante, alguém que tem procurado encarnar esta visão.
 
Abraços

Lauberti Marcondes
http://diaconia-integral.blogspot.com
 
Conferência: Caminhos, Descaminhos e Novos Desafios para a Teologia da Missão Integral e pelo Movimento de Lausanne – I – Ronaldo Cavalcante.

Introdução
Parece não haver mais dúvidas acerca da religião como fator constitutivo da cultura brasileira e de sua identidade social aberta aos fenômenos religiosos, contrariamente às premissas da modernidade racionalista que postulavam o banimento de qualquer tipo de explicação da sociedade a partir de uma cosmovisão religiosa, qualquer que fosse. Contudo, verifica-se também aqui a presença de interessantes e eficazes elementos secularizantes. Quer dizer, o sincretismo brasileiro, tão forte nos inícios da nação "cordial", revigora-se e promove o encontro de um mundo ainda encantado, mágico e religioso, ao som de sinos, atabaques, mantras e cânticos sagrados com o entzauberung der welt – em que ciência, técnica e tecnologia de ponta forjam uma nova sociedade em detrimento do "exílio do sagrado", ao som de bips, alarmes e celulares – os ruídos de um novo tempo!

Creio ser oportuno pontuar que grande parcela da religiosidade brasileira atual, está moldada pelo segmento cristão, como também o seu imaginário e dinamismo do cotidiano popular. Sem esquecer ainda que o cristianismo brasileiro constituiu-se, primeiramente com a presença massiva, hegemônica e normatizante do catolicismo ibérico tridentino (séc. XVI em diante); posteriormente, com o chamado protestantismo histórico, anglo-saxônico e anglo-americano de imigração e missão (séc. XIX em diante), já incluído aí o pentecostalismo; e por último, o denominado neopentecostalismo (final do séc. XX em diante), agregando elementos "novíssimos", sincréticos e insólitos ao já rico panteão religioso nacional. Apenas por esses dados iniciais, estaria mais que legitimada do ponto de vista empírico uma investigação minuciosa relativa ao fenômeno em si; hoje, maximizado e com um espectro multifacetado; como também e principalmente o lugar que o mesmo ocupa na cultura brasileira como um todo.

Percebe-se também que a tradição cristã sempre cultivou a prática de algum tipo de formação teológica pari passu com o seu fenômeno religioso. Portanto, uma questão importante seria entender a devida relação entre esses dois campos. De um lado, o fervilhar pastoral da experimentação cristã de um tipo de "sagrado selvagem" e do êxtase arrebatador da liberdade em Cristo com todos os seus matizes e cores tratando de "iluminar a dor" da existência humana com o recurso nada modesto de conectar-se ao transcendente, ao "totalmente outro", buscando assim minorar o sofrimento e superar a indigência material e a exclusão social, além de salvaguardar a certeza de um futuro melhor do que o atual presente de misérias. Por outro lado, a necessidade de normatização e regulação da fé – regula fidei do fenômeno religioso por meio de uma compreensão da mesma – intellectus fidei; impondo regras e limites hermenêuticos na leitura da Escritura e que simultaneamente impõe balizamentos ético-morais do agir cristão orientando, coibindo os excessos e fazendo com que a riqueza da religiosidade atue de forma consciente e crítica como força agregadora na construção de um ethos que reflita a dignidade e caráter de Deus. Portanto, a ação reflexiva e oportuna de uma boa teologia contextual, não por diletantismo ou mesmo soberba, mas antes pela necessidade de que os saberes da espiritualidade cristã, da cidade de Deus escondidos na Escritura se articulem com os saberes da humanidade, da cidade do homem para a melhor promoção da vida e humanização.

I. Os caminhos desencaminhados...
Já, há um bom tempo, após muitos estudos, pesquisas e reflexões, e a partir de uma performance conhecida, porquanto recorrente, que pudemos localizar o problema evangélico brasileiro como sendo o de uma anomalia de identidade. Anomalia que possibilitou uma constatação factual: não sabemos mais quem somos ou o que somos, quer dizer, temos a resolver um dilema ontológico. Esse é de fato um problema estrutural, basilar e de magnitude considerável uma vez que deflagrou problemas corolários imprevisíveis e que para não poucos são também "problemas coronários", ou seja, um local de situações quase sempre desgastantes, estressantes e mal resolvidas – constituindo-se num espaço de enfermidade – exatamente pela acumulação e sobreposição das mesmas.

A guisa de aproximação façamos o necessário recorte: somos, nós da FTL, em nossa grande maioria, cristãos protestantes, oriundos de igrejas históricas que, muito embora, nossa razoável formação cristã proveniente da insistência na Escola Dominical e, no caso do clero, de seminários e faculdades de teologia, a verdade é que fomos incapazes de superar nossas especificidades denominacionais em nome da causa maior do Evangelho: a Unidade cristã – estamos e somos desunidos, essa é a nossa vergonha; vivemos em ilhas formando um imenso arquipélago, cada vez mais fragmentado (tipo de divisão celular descontrolada) e à deriva. Encontros como esses, proporcionados pela FTL, são verdadeiros (e importantes) "faróis" para nossa orientação e lugar de descanso momentâneo na dura convivência com o nosso dilema. Tal situação (de alienação uns dos outros) se solidificou exatamente pela complexidade interna de cada ilha denominacional impedindo que esforços pela unidade lograssem êxito.

Concomitantemente, estamos aqui porque acreditamos que a idéia, a proposta da Missão Integral emanou e nos veio ao encontro, a partir do próprio Evangelho que descreve o ministério de Jesus como tendo, por um lado, essa dimensão de "integralidade" e, por outro, guardando certa reserva ao estruturalismo eclesiástico, porquanto privilegia explicitamente as relações pessoais em detrimento das conjunturas institucionais, já chamado entre nós de "intitucionalismo patológico" (G. Alencar). A estrutura eclesiástica é importante como serva do Evangelho. Mas não é constitutiva. Ela é uma questão de "bene esse" da Igreja e não de "esse", ou seja, o que está em jogo não é o "ser", e, sim, o "bem estar" da Igreja, como nos diz G. Brakemeier. Isso implica em que o caráter institucional da Igreja tem uma importância secundária quando comparado com o testemunho da fé.

A evidência recuperada do Evangelho desse caráter integral da missão foi exaustivamente explorada e ressaltada nesses 36 anos de caminhada, desde Lausanne, 74. Nossos pioneiros da Missão Integral, brasileiros e latino-americanos, etc., nossos mestres, aqui nos brindaram, enriquecendo-nos com esse resgate. Em meio ao caos da igreja evangélica brasileira esta visão do Evangelho nos alimenta a esperança para continuar caminhando.

Entretanto, parece ser que a mensagem da Missão Integral, não identificada com um denominacionalismo protestante, presente de forma cristalizada nas igrejas históricas, nem tampouco como o movimento pentecostal, herdeiro tardio das correntes avivalistas dos séculos XVIII e XIX e muito menos ainda com o movimento ecumênico, mais ligado ao mundo acadêmico e às teses do liberalismo teológico e da neo-ortodoxia, e que, enfatizando mais a missão e evangelização num sentido mais abrangente, tal mensagem, ficou restrita a uma minoria remanescente desses três segmentos citados, sem envolvimentos denominacionais maiores, somado a uma crítica contumaz aos excessos do pentecostalismo (a gente era feliz e não sabia!!!) e ainda um distanciamento, aliás, mutuamente estigmatizante do movimento ecumênico.

Este modus operandi de isolamento, inconsciente ou não, nos segregou ainda mais, uma vez que nos afastou também da necessidade e exigência de uma boa formação teológica nos impedindo de renovarmos nossa identidade com aportes, tanto da espiritualidade cristã clássica, como também das várias e ricas tradições protestantes, bem como da própria teologia da libertação e da leitura popular da Bíblia. O resultado foi que, a mensagem da Missão Integral, apenas pode ser desenvolvida e encontrada em determinados grupos para-eclesiásticos (abu/mpc/jovens da verdade/vpc/visão mundial, e muitos outros...), em congressos e consultas ocasionais, em ministérios individuais e especialmente na FTL.

Para tornar ainda mais complexa a situação, deve-se mencionar que não contávamos com o surgimento do "rolo compressor" do neopentecostalismo que pela sua agressividade atropelou com violência os três segmentos citados criando uma situação de "inundação religiosa", caótica e anômica, portanto descontrolada, mas que surpreendentemente parece abrir espaço, face ao esgotamento, para algo mais singelo como a Missão Integral em sua simplicidade evangélica. Quer dizer, perante o colapso do fenômeno evangélico, a possibilidade de volta ao Evangelho torna-se concreta e plausível.

Um fato é inquestionável: a ausência da mensagem da Missão Integral favorece o crescimento e fortalecimento da bizarrice carismática, por um lado e do radicalismo doutrinário, por outro. Senão vejamos:

1. Carismatismo e utilitarismo religioso – que empreende tanto uma leitura individualista quanto materialista da Escritura e da vocação da igreja, estimulando um tipo de hedonismo religioso e um aburguesamento da fé criando uma cultura de gueto paralela, cujo pragmatismo exclui qualquer tipo de abordagem mais crítica; absolutizando a experiência e legitimando o mundanismo consumista em nome de Deus – um simulacro do mundanismo legitimado.

2. Dogmatismo neofundamentalista – empreende uma leitura redutora, e, portanto, não integral do mistério da fé. Busca chegar às fórmulas doutrinais perfeitas, definindo e sintetizando a essência do cristianismo em palavras, num tipo de teologia positiva. E que, definindo, age por exclusão, pois se tem a convicção de posse da verdade e de poder manipulá-la ao bel prazer. Um Deus sem nenhum mistério e experimentado no interior da coisificação religiosa. Enfim, tal postura faz de Deus um ser domesticado, engaiolado – um simulacro da verdade objetivada.

II. Descaminhos encaminhados...
Não obstante, tal condição, torna-se um tempo de oportunidades de fé – Não ignoremos jamais a definição de fé extraída das Escrituras: "Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem" (Hb 11,1). Não ignoremos igualmente, o significado supremo de que "De fato, sem fé é impossível agradar a Deus..."(Hb 11,6). A fé somente tem sentido a partir da ausência. Ou, também como nos diz o próprio Senhor: "Bem-aventurados os que não viram e creram" (Jo 20,29), pois "a fé vem pelo ouvir" – fides ex auditu ( ). Realidades presentes não exigem fé, descartam-na! Ao contrário da presentificação divina atrelada ao poder institucional, manifesto numa estética de empoderamento das almas, tanto no carismatismo utilitário, quanto no dogmatismo neofundamentalista, que igualmente e há seu tempo, descartaram a profecia em detrimento da monarquia na história bíblica do povo de Deus, a fé depende da ausência, a ausência outorga significado à fé, fazendo da desinstalação do "arameu errante" e da "noite escura da alma", lugares e caminhos de teofanias e epifanias.

Ao sentirmo-nos fracos e impotentes, creio, poderemos rearticular a mensagem da Missão Integral, em meio à precariedade evangélica do nosso país – ausência, fraqueza, loucura, são sinais de possibilidades. Possibilidades de fazermos novamente discipulado, de lutarmos por uma boa educação teológica dos nossos futuros pastores, discutirmos novamente o conceito de "princípio protestante", de buscarmos os "lugares" perdidos da espiritualidade cristã e a participação da igreja, por meio do diálogo: na cidadania, na luta pelos direitos humanos e nos temas da cultura brasileira, como a riqueza da nossa música, por exemplo. Quem sabe os princípios axiais da Missão Integral possam ser veiculados por uma nova música cristã.

Com isso, minha "sugestão" é que a mensagem da Missão Integral seja retomada de forma programática nos diversos núcleos da FTL, havendo concentração em pelo menos três grandes áreas de reflexão:

Área 01 – A Missão Integral propriamente dita. Com o devido espaço para um revisionismo crítico necessário. a) Histórico da caminhada (bibliografia especializada); b) Avanços e retrocessos do movimento; c) Temas centrais de sua teologia; d) Motivações e intenções do movimento; e) Atualidade e futuro da Missão Integral no Brasil.

Área 02 – Identidade protestante e espiritualidade cristã. a) Protestantismo e Escritura; b) Protestantismo e modernidade; c) Psique protestante; d) Protestantismo e educação teológica; e) Protestantismo e liberdade; f) Loci spiritualis da Escritura; g) Loci spiritualis dos Pais da Igreja; h) Loci spiritualis do medievo; i) Loci spiritualis protestantes; j) Temas atuais e fronteiriços da espiritualidade.

Área 03 – Cristianismo, Evangelho, igreja e cultura brasileira. a) Judaísmo e cristianismo; b) Cristianismo e helenismo; c) Evangelho e Reino de Deus; d) Igreja e Estado; d) Igreja e sociedade; e) Igreja, missões, evangelização e discipulado; f) Igreja, ética e moralismo; g) Igreja, etnia e inculturação; h) Fé cristã e pluralismo religioso; i) Cristianismo e mpb; j) Música cristã e o desafio da música gospel.

Bibliografia:

ALENCAR, Gedeon, Protestantismo tupiniquim: hipóteses da (não) contribuição evangélica à cultura brasileira. São Paulo: Arte Editorial, 2005.

ALMEIDA, Ronaldo, Dinâmica religiosa na metrópole paulista: São Paulo: CEBRAP, 2003.

________________,

AMORESE, Rubem (ed.), A igreja na virada do milênio: a missão da igreja num país em crise. Brasília: Comunicarte, 1995.

CAMPOS, Leonildo S., "O estudante de teologia candidato a pastor – contribuições das ciências sociais para uma análise da formação do futuro clero protestante brasileiro" in Revista Simpósio 45, vol. 10 (1), São Paulo: ASTE, 2003, pp. 5-22.

____________________, Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um empreendimento neopentecostal: São Paulo/Petrópolis: UMESP/Vozes, 1999.

CAVALCANTE, Ronaldo, A cidade e o gueto: introdução a uma teologia pública protestante e o desafio do neofundamentalismo evangélico no Brasil. São Paulo: Fonte Editorial, 2010.

GONDIM, Ricardo, Missão integral. São Paulo: Fonte Editorial, 2010.

KOHL, Manfred W. e BARRO, Antonio C. (orgs.), Educação Teológica Trasnformadora. Londrina: Descoberta, 2004.

McALISTER, Walter, O fim de uma era: um diálogo, crítico, franco e aberto sobre a igreja e o mundo dos dias de hoje. Rio de Janeiro: Anno Domini, 2009.

SCHNEIDER-HARPRECHT, Christoph (org.) Teologia prática no contexto da América Latina. São Leopoldo: Sinodal, 1998.

YODER, John H., SOLANO, Lilia, PADILLA, Carlos, R., Iglesia. ética y poder. Buenos Aires: Kairós, 1998.

Fonte: www.renas.org.br

 

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